França uma vez mais à frente: desta vez a inscrever o direito ao aborto na Constituição
“Hoje, a França envia uma mensagem histórica ao mundo inteiro: o corpo das mulheres pertence-lhes e ninguém tem direito a dispor dele em vez delas”, celebrou, após a votação, o primeiro-ministro, Gabriel Attal. “É uma segunda vitória para Simone Veil e para todas as que abriram o caminho”, concluiu.
Cabendo-lhe abrir uma sessão história, o primeiro-ministro, Gabriel Attal, chegou ao Palácio Versailles acompanhado de Jean Veil, o filho de Simone Veil, que há 49 anos fez adoptar – e deu nome – à lei da despenalização do aborto em França. “A lei determina as condições em que se exerce a liberdade garantida à mulher de recorrer a uma interrupção voluntária da gravidez” – são estas as palavras acrescentadas agora à Constituição francesa, que assim consagra o direito ao aborto. “Liberdade para sempre”, antecipara, na sua capa, o Libération, jornal com uma linha editorial conhecida por simpatizar com estas causas.
Texto aprovado de forma esmagadora
O projecto de alteração já tinha sido aprovado pela Assembleia Nacional e pelo Senado, mas mudanças constitucionais implicam uma votação conjunta das duas câmaras do Parlamento, o Congresso, que Emmanuel Macron convocara para esta segunda-feira, dia 4. Reunidos na câmara do Congresso de Versailles, os parlamentares aprovaram o texto de forma esmagadora, com 780 votos contra 72, bem acima dos 512, a maioria de três quintos que era necessária para a sua adopção.
Em resposta aos críticos, que defenderam que esta era uma mudança desnecessária por considerarem que este direito não está ameaçado em França, foram vários os intervenientes do debate a lembrar uma das frases mais conhecidas da filósofa e feminista Simone de Beauvoir: “Bastará uma crise política económica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.”
“Para nós não há dúvidas, queremos evitar o risco de ver o aborto a ter de enfrentar um conservadorismo conquistador ou o fanatismo religioso”, afirmou Maryse Carrère, senadora que representa a Aliança dos Socialistas e Democratas Europeus. “Devemos isso a todos os progressistas do mundo, que vêem a França humanista a liderar o caminho.”
Carrère foi uma das parlamentares a lembrar “o recuo das liberdades de uma ponta à outra do planeta”. Para a centrista Generiève Darrieussecq, do MoDem, este não era um voto “nem inútil nem supérfluo”, “mas uma mensagem forte para todas as mulheres do mundo.”
Mathilde Panot, chefe da bancada do movimento de esquerda A França Insubmissa na Assembleia Nacional, falou de uma “vitória” que é tanto uma homenagem às mulheres que primeiro percorreram o caminho desta luta como uma “promessa para todas as mulheres que lutam no mundo pelo direito a disporem do seu corpo, na Argentina, nos Estados Unidos, em Andorra, Itália, Hungria, na Polónia”.
Numa sessão repleta de simbolismos, houve deputadas a vestir-se de branco, “a cor das sufragistas” – e uma forma de homenagear as congressistas democratas que entraram de branco no Congresso dos Estados Unidos, onde o Supremo Tribunal reverteu em 2022 a decisão que estabelecera o direito ao aborto – ou de verde, como Panot, “em homenagem às argentinas que usaram essa cor na luta magnifica que lhes permitiu conquistar o aborto em 2020” e numa altura em que enfrentam a ameaça “de extrema-direita de Javier Milei”.
Aurore Bergé, ministra da Igualdade de Género e do Combate à Discriminação, chegou a Versailles de mão dada com a mãe. Ainda na Assembleia Nacional, onde foi, até há pouco tempo, chefe da bancada
parlamentar do partido de Macron, Renascimento, Bergé contara como a mãe teve de fazer uma “curetagem [raspagem do útero] sem anestesia”, depois de “uma intervenção que não correu muito bem”, antes da legalização do aborto, em 1975.