Cineasta camaronesa conquista “Tigre” com documentário sobre a infância roubada pelo Boko Haram
“Le Spectre de Boko Haram”, o documentário de Cyrielle Raingou, levou para casa o Tigre, o galardão máximo da 52.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Roterdão (IFFR, como é conhecido em inglês) marcou o regresso ao encontro de todos em pessoa e não virtualmente ou em modo híbrido e terminou a 07 de Fevereiro.
Com um total de 242 longas-metragens (incluindo 97 estreias mundiais), e de 213 curtas e médias metragens (110 das quais em estreia mundial), o festival acolheu mais de 2000 convidados da indústria do cinema e somou um total de 252,000 visitantes.
“Le Spectre de Boko Haram” decorre perto do lugar onde a cineasta cresceu, no Norte dos Camarões, e revela a conhecida organização terrorista islâmica Boko Haram através dos olhos das crianças.
A realizadora camaronesa Cyrielle Raingou lamenta que a imagem estereotipada de uma África miserável e pobre com a qual o Ocidente exerce a sua superioridade moral a partir do cinema e das notícias diárias não é, de forma alguma, um acto inocente. Muito menos impune. Não é sequer caridoso. “Sempre que há câmaras em África, elas estão lá para assinalar a miséria e a pobreza. Eu própria cresci numa pequena aldeia e assumi que tudo o que era belo e inspirador viria de fora, do mundo ocidental”, referiu após saber que tinha sido premiada.
“O filme, à sua maneira, oferece uma imagem tão diferente, tão conciliadora e ao mesmo tempo tão tremenda, tão terna e cruel daquela mesma África de que fala que acaba por dar um novo significado à sua denúncia.”, refere a crítica de cinema Florence Colombani. “O filme só agora começou a sua viagem e tudo indica, dada a unanimidade e o entusiasmo em torno dele, que estamos perante um dos grandes filmes de não-ficção, não exactamente documentários, do ano”, adianta.
“Le Spectre de Boko Haram” conta a história de três crianças de uma aldeia, Kolofata, no norte dos Camarões, na fronteira com a Nigéria. A rapariga não tem nome porque perdeu o pai. Os irmãos Mohamed e Ibrahim não têm nada. Os três são órfãos e vítimas dos massacres indiscriminados e fundamentalistas do grupo terrorista. Os assassinos, não aparecem. Ou melhor, a sua imagem emerge clara e violentamente através do ruído dos militares que ocupam tudo e do vazio que deixam no seu rasto. O filme relata a vida das crianças, mas fá-lo de uma forma tão delicada, precisa e luminosa que a tragédia que habita cada uma destas pequenas existências adquire subitamente o tamanho do enorme, do incompreensível, talvez do eterno. A câmara limita-se a seguir o dia-a-dia de cada um deles e deixa a história emergir da espontaneidade crua e ligeiramente fantasiosa da imaginação de uma criança. Tão selvagem e feroz como é belo.
Raingou referiu que para encontrar o ponto de equilíbrio levou quase três anos de trabalho exaustivo. A meio do que parecia ser o filme, decidiu recomeçar, mesmo correndo o risco de perder tudo, assim que se deparou com a história da rapariga e depois dos irmãos. “Lembro-me que quando conheci a mãe da Falta, ela ainda estava de luto. Mas assim que começou a falar do seu marido, os seus olhos iluminaram-se. Embora seja tabu falar de relações íntimas, ela disse à filha como conheceu o pai, como ele era gentil com ela, como se davam bem… Na verdade, ela nunca tinha falado dele porque ninguém lhe tinha pedido”, diz Raingou para descrever talvez o momento exacto em que tudo começou.
Durante “Le Spectre de Boko Haram” a mãe dirá a mesma coisa à sua filha, e fá-lo-á da mesma forma que as mães contam uma história semelhante tantas vezes em tantos outros filmes. A novidade agora é que, neste simples conto de amor, o essencial agora é simplesmente a morte.