Nos caboucos do golpe nigerino

Uns poucos, vai-se desvendando pormenores do golpe de Estado ocorrido no Níger no dia 26 de Julho que derrubou o presidente eleito, Mohamed Bazoum.

Num extenso artigo, publicado ontem, dia 24 de Agosto, intitulado “No Níger, autópsia de um golpe de Estado”, o jornal francês Le Monde acaba por revelar muito do jogo de bastidores que levou ao golpe.

O periódico coloca várias perguntas: Porque um homem unanimemente reconhecido como competente, foi derrubado tão facilmente sem derramamento de sangue? Quem instigou o golpe? Quem beneficiou? Interrogações que o texto tenta responder.

“Por volta das 8h00 da manhã, o presidente Bazoum telefonou-me a dizer que queria entrar no seu gabinete, mas que a guarda presidencial o estava a impedir de sair da sua residência”, recorda Rhissa Ag Boula, ministra e conselheira do chefe de Estado deposto.

Outro acontecimento que denunciou a anormalidade nesse dia, deu-se quando os funcionários do palácio presidencial se fizeram ao local e foram “convidados a voltar às suas casas.” Ordem que se estendeu aos funcionários que trabalhavam nos ministérios que ladeiam o Boulevard de la République. Ao final da manhã, a zona foi totalmente evacuada.

Desde o início da manhã que um nome andava na boca de toda a gente: o general Abdourahamane Tiani. Este era um dos fiéis seguidores do antigo presidente Mahamadou Issoufou, que o nomeou chefe da guarda presidencial, em 2011. Este oficial superior de 59 anos, natural de Filingué, no sudoeste do país, tem fama de ser dissimulado e de agir com brutalidade. Durante uma década, à sombra do seu protector acumulou uma considerável fortuna.

Avisos sobre Tiani

Nos corredores do palácio presidencial, havia já algum tempo que muitos duvidavam da lealdade de Tiani em relação ao poder democraticamente eleito. “Há mais de um ano que íamos avisando o presidente Bazoum sobre o comportamento de Tiani”, confidenciou um conselheiro do chefe de Estado, citado pelo Le Monde. “Tentámos várias vezes chamar a atenção do presidente, mas ele respondia sempre: “O Tiani é leal, tenho toda a confiança nele. Ele é ingénuo”, referiu uma fonte de segurança presidencial.

Contrariamente aos rumores que circularam nas primeiras horas do golpe, Mohamed Bazoum não tinha intenção de demitir o chefe da guarda presidencial. Bazoum, contudo, criou um conflito adicional com os generais: não estava disposto, como o seu antecessor, a dar-lhes permanentemente dinheiro. Segundo a mesma fonte, a guarda presidencial não tinha um orçamento próprio, mas todas as semanas Tiani ia ter com o presidente que lhe dava vários milhões de francos FCA. Quando havia operações especiais, por exemplo, quando o Presidente se deslocava às províncias, Tiani aproveitava para pedir mais dinheiro. Tudo sem prestar contas. Várias vezes Bazoum pediu a Tiani transparência na contabilidade.

Também não foi por acaso que o golpe teve lugar alguns dias antes do Dia da Independência, celebrado a 3 de Agosto, uma vez que as comemorações são um bom pretexto para deslocar tropas. Segundo uma fonte diplomática ocidental, o general Tiani deslocou, a 25 de Julho, de Niamey, a capital, para a cidade de Diffa, os soldados mais fiéis ao chefe de Estado. Diffa fica a 1.100 quilómetros de distância, no sudeste do país, nas margens do Lago Chade, onde persiste a insurreição islamista do grupo terrorista Boko Haram persiste. Foi lá que se realizaram a maior parte das comemorações.

Alguns meses antes do golpe, já se tinham observado movimentações no seio da guarda presidencial. “Os elementos a quem estava confiada a segurança de Bazoum foram, em grupos de dois ou três, sendo substituídos. No final, 40 pessoas foram substituídas”, observa a fonte de segurança já citada.

Tiani, entretanto, havia nomeado pessoas da sua confiança para postos-chave. Bazoum chegou a dizer: “Não posso retirar o Tiani de qualquer maneira, porque o Issoufou [antecessor de Mohamed Bazoum] vai pensar que estou contra ele.”

Ao meio-dia de 26 de Julho, o chefe de Estado e a sua comitiva continuavam a acreditar que o general amotinado podia ser detido. Na sua conta do X (antigo Twitter), às 13h33, escreveu: “O presidente da república e a sua família estão de boa saúde, estão bem.” “O exército e a guarda presidencial estão prontos para atacar os elementos da GP [Guarda Nacional]”, avisou.

Anterior presidente tenta mediação

Mahamadou Issoufou, com quem Mohamed Bazoum manteve uma relação política de décadas antes de lhe suceder no poder, foi imediatamente alertado para um possível derramamento de sangue. Por volta das 13h00, dirigiu-se ao palácio e reuniu-se sucessivamente, por diversas vezes, com o general golpista e o chefe de Estado deposto. As tentativas de mediação resultaram em fracasso. Sugere ainda que outros oficiais participem nas tentativas de mediação. Segundo Rhissa Ag Boula, o general Tiani pediu especificamente que os generais Salifou Mody, Mohamed Toumba e Moussa Salaou Barmou se juntassem ao grupo. A eles juntaram-se outros oficiais, representando diferentes alas de exército.

Naquela altura, para Bazoum e seus apoiantes, tudo parecia ainda possível, uma vez que a hierarquia militar ainda não se tinha colocado ao lado do chefe da guarda presidencial e este último ainda não tinha reivindicado a responsabilidade pelo golpe.

Bazoum de mãos atadas

A cinco quilómetros de distância, no quartel-general da guarda nacional, os militares fiéis ao presidente preparam-se para lançar o assalto, activando as suas redes para obter apoio estrangeiro para libertar o refém Bazoum. A França, um aliado privilegiado do regime, está a ser contactada. Várias fontes nigerianas e francesas confirmaram ao Le Monde o que os próprios golpistas declararam mais tarde na televisão nacional: no dia 26 de Julho, foram detidos Hassoumi Massaoudou, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mohamed Bazoum, na qualidade de Primeiro-Ministro interino, e o coronel Midou Guirey, comandante da guarda nacional, que actuava por conta de Mohamed Bazoum.

A Guarda Nacional, agindo em nome do Estado-Maior das Forças Armadas, apelou à França para intervir no sentido de libertar o presidente. O Níger de Bazoum é um dos últimos regimes aliados da França no Sahel, uma região onde os soldados franceses já não são bem-vindos e foram descartados pelas juntas dirigentes do Mali e do Burquina Faso.

Mas, apesar de sequestrado no palácio, Mohamed Bazoum vetou a ideia. “Bloqueou-nos”, lamenta um dos seus apoiantes. “Bazoum telefonou diretamente ao chefe das operações francesas no Níger [1.500 soldados estão lá destacados para ajuda o exército a combater o terrorismo]. Na altura, Bazoum pensou que as negociações seriam bem sucedidas”, refere a mesma fonte.

Por volta da meia-noite, dá-se o volte-face. A estação de televisão nacional deixa de emitir. Dez pessoas em uniforme militar anunciam aos telespectadores que tinham “decidido acabar com o regime que vocês conhecem” e que se tinham juntado para formar o Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria (CNSP).

Os soldados enviados para negociar com o general Tiani “saíram das discussões como golpistas”, confirma um diplomata ocidental. Tiani tem fama de ser um mestre a dividir as águas.

Na tarde de quinta-feira, 27 de Julho, o Estado-Maior, que até então se tinha mantido em silêncio, anunciou, num comunicado de imprensa, que estava do lado dos golpistas para “evitar qualquer derramamento de sangue” entre irmãos de armas. Mas, no palácio, Mohamed Bazoum não se deu por derrotado. O presidente, sindicalista experiente e veterano de batalhas políticas, recusa demitir-se e a aceitar as justificações para o putsch apresentadas pela junta na noite anterior, começando pela “deterioração contínua da situação de segurança e má governação.”

Ao contrário dos presidentes civis depostos pelos militares no Mali e no Burquina Faso, a presidência de Mohamed Bazoum foi caracterizada por bons resultados contra os grupos jihadistas, ao mesmo tempo que tentou, na medida do possível, colocar o Estado numa base mais sólida no que diz respeito ao sector petrolífero, o que deverá gerar boas receitas com a entrada em funcionamento do oleoduto entre o Benim e o Níger, no Outono.

Mas em Niamey, o bastião histórico da oposição, “o povo do Níger manteve o sistema que Mohamed Bazoum encarnava e não os seus actos”, analisa Elhadji Idi Abdou, vice-coordenador da ONG Aliança para a Paz e a Segurança. E acrescenta: “De facto, Mohamed Bazoum não tinha as mãos livres porque, na realidade, o PNDS [Partido Nigerino para a Democracia e o Socialismo, o partido que fundou com Mahamadou Issoufou] decidia muito por ele.”

Junta golpista rápida a alcançar os objectivos

Para consolidar o seu poder, os homens da CNSP souberam tirar partido desta desconfiança popular, retirando também as experiência das juntas vizinhas. No Níger, os golpistas fizeram em quinze dias o que os burquinames conseguiram em quatro meses e os malianos num ano: derrubar um presidente civil e apresentarem-se como os salvadores pátria, resgatando o povo de um sistema político e de segurança moribundos; nomear um primeiro-ministro civil; formar um governo; unir o povo contra as sanções impostas pela Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e contra um inimigo designado, a França.

Efectivamente, o ressentimento contra a antiga potência colonial é forte, como ficou demonstrado na manifestação de 30 de Julho, que se transformou num ataque à embaixada francesa em Niamey.

Depois, apesar das ameaças de intervenção militar, a junta intensificou os seus actos, recusando-se a receber parte da mediação internacional. O presidente Bazoum foi acusado de “alta traição” e de “atentar contra a segurança interna e externa do Níger”, crimes todos eles puníveis com a morte.

Certo é que um mês após o golpe, o presidente Bazoum continua detido em condições denunciadas por uma grande parte da comunidade internacional como “desumanas” e continua a recusar-se a assinar a sua demissão.

O CNSP continua a ter o controlo total dos timings. A 19 de Agosto, o general Tiani, de botas na mão prometeu uma transição de três anos, findo os quais entregará o poder. Se conseguir manter-se no poder, este putsch, o sexto na África Ocidental desde 2020, fará com que esta região desestabilizada por grupos jihadistas entre numa era em que os militares são o recurso e os presidentes civis se sentem mais ameaçados do que nunca.

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